De repente, a menina levantava sobressaltada da cama. No terreno descampado onde ficava a fazenda em que a família morava, administrada por seu pai, a ventania varria as árvores recém-plantadas, deixando no ar um zumbido aterrorizante. No céu, os raios riscavam de amarelo vivo as nuvens cor de chumbo. Cada estrondo de trovão arrepiava até a alma. O dia virava noite. Com o coração na boca, os olhinhos negros arregalados, ela morria de medo. Um medo assim quase paralisante, quase. Tinha oito anos e na hora desses temporais não sei o que passava pela cabeça dela, talvez o pensamento de que alguém tinha de fazer o serviço de proteger a mãe, o pai e o irmão menor. Tanto que não deixava ninguém levantar da cama. Tremendo mas determinada, se armava de coragem para ir fechar janelas e garantir que portas estavam fechadas. Depois, respirando um tantinho mais aliviada, voltava e se agarrava aos três na mesma cama de madeira. Era sempre assim quando chovia forte na fazenda, no Interior de São Paulo.
Depois, com 11 para 12 anos, o pai ensinou-a a dirigir o caminhãozinho usado por ele para buscar e levar os bóias frias da cidade para a fazenda. Certo dia, ele - que passava o dia trabalhando na sede ou cuidando de questões adminsitrativas na cidade, com o fazendeiro - demorou a retornar e os trabalhadores não tinham como voltar para casa. Ela não pensou duas vezes, mandou todos subirem na caçamba do caminhão e assumiu a direção, sem nem bem alcançar os pedais, na ponta dos pés, guiando pela estradinha de terra cheia de solavancos, o peito estufado de orgulho. Depois levou bronca do pai, que não escondeu a pontinha de orgulho pela filha. Pegou gosto pela coisa e sempre que dava uma chance dirigia o carro do dono da fazenda. Para ela, era uma grande brincadeira. Quando ouvia, ao longe, o barulho do motor do avião, indicando que o fazendeiro estava chegando, ela pedia ao pai se poderia buscá-lo. Ao primeiro sim, corria para pegar as chaves do Opala quatro portas, hidramático, e seguia para buscar o patrão no campo de pouso construído na fazenda.
A vida era boa. Como não tinha luz elétrica, a família - formada também pelos tios e primos que moravam na casinha vizinha, na mesma fazenda - se reunia em volta de lamparinas para contar histórias. Durante o dia, sentavam no pomar com a mãe para comer frutas - pêras, pêssego, maça, manga. As crianças gostam de brincar de estilingue e de pegar vagalumes. Aos domingos, todo mundo se arrumava para ir à missa, na cidade. Todos iam a cavalo ou de charrete. Ela lembra muito bem do dia em que ganhou uma bicicleta que o Papai Noel havia deixado na casa da avó. No primeiro passeio, um tombo levou-a para o Degrande, um senhor conhecido na cidade por consertar, ou melhor, dar um jeito no mal jeito. Com um polegar avantajado, ele resolveu o problema do nervo encavalado da menina.
Quando chegou a idade de ir para a escola, aos 6 anos, a menina passou por maus bocados. Como a casa ficava longe da cidade, para poder estudar ela teve de ir morar com a avó, perto do colégio. Foram dias muito difíceis aqueles. Toda noite era uma choradeira danada. Ela não se conformava, e nunca se acostumou, morria de saudade da mãe e do pai. Além do que não entendia direito por que, de uma hora para outra, tinha de ficar longe deles e a vida ficou tão triste. Foram várias tentativas de arrumar uma carona com vizinhos para poder dormir na fazenda. Algumas vezes, mesmo sem ter que sair, um ou outro amigo não resistia e levava a menina.
O tempo passou, a menina cresceu e foi morar na capital, em uma pensão na Bela Vista. Tinha 19 anos e começou a trabalhar para juntar dinheiro e fazer uma faculdade. No começo, era uma dureza enfrentar a hora de voltar para casa e encarar a solidão na pensão que ficava numa travessa da rua Frei Caneca, perto da Praça 14 Bis. Chorava toda noite. Esperta que era, experimentou testar o trajeto do ônibus para o trabalho no dia anterior para não errar e chegar atrasada no primeiro dia. Mas sem nenhuma familiaridade com a cidade grande, pegou muito ônibus errado.
Da pensão para a república, dividida com dois amigos do peito, foi um pulo. Apartamento alugado, os três saíram para comprar um colchão de solteiro para o único deles que não tinha descolado onde dormir. A aventura aconteceu na Teodoro Sampaio. O colchão foi alvo de todos os olhares, já que voltou para casa de ônibus, enrolado em uma corda. De tão felizes, os três resolveram estrear a nova casa mesmo sem ter a luz ligada. Depois de 15 anos em São Paulo, a menina que tinha medo de raio e trovão conseguiu comprar seu apartamento. Obstinada, mais tarde construiu uma casa na mesma cidade onde sua família mora até hoje. Gente boa, um serzinho apaixonante, abençoado por Deus e rodeado de bons amigos, continua a levar uma vida simples e feliz. De vez em quando, o medo de enchentes nas ruas de São Paulo ainda a faz lembrar de quando era pequena e detestava tempestade.
(Fernanda Teixeira)