quarta-feira, 10 de abril de 2013

O Perfume do Cadáver

Você não pode encontrar 
paz evitando a vida. (Virgínia Woolf) ___________________________________________________________________ 

Lembro com carinho do velório de JR. A placa de plástico preta ao lado da porta de vidro fumê. Nela, o nome de José Ricardo Almíscar de Figueiredo escrito em letras amarelas. Ajeitando no nariz os óculos de massa caramelo, entro e dirijo-me ao caixão. Antes, arrumo o nó da gravata estreita de seda francesa e abotôo o paletó do terno azul marinho feito sob medida. O aroma das coroas de flores asfixia parentes, amigos, a viúva traída. Pigarro, mais outro, a tossinha seca, duas gargantas irritadas. Uns fumam. Alguém abre o basculante da janela que dá para a rua. O vento agradável é um novelo de algodão acariciando o rosto dos enlutados.

Antes que me aproxime do corpo, reconheço o delegado, as garotas de programa, o dono da boate, os leões de chácaras, os cantores, o padre. Olho no olho de cada um, cumprimento todos ao mesmo tempo com um movimento lento de cabeça para baixo, os olhos fechados. Avisto o corpo de JR acomodado entre ramos de alecrim e folhas de lavanda. Insustentáveis lembranças. Poderíamos ter sido bons amantes. Deixo os cabelos lisos e compridos caírem sobre o rosto ao me inclinar para beijar a boca do morto. Ninguém nota. Gosto de madeira, perfume de malte escocês. Neurótico que sou, sigo roendo as unhas mesmo relaxado. Sobra uma farpinha. 

De terno de linho claro, camisa esporte e barba feita, JR morreu jovem. Um parque de diversões pela frente. Overdose de pó e uísque. Foi encontrado nu, o corpo torneado, queimado de sol, estirado na cama do flat de luxo. A gente se conhecia desde os 14 anos. No RG, a mesma idade. 33 anos, em dezembro deste ano. Os dois de Capricórnio. Estilista bem-sucedido. Eu me formei advogado. 

Fantasio nossa última noite no dancing. Não me lembro por que nos desentendemos. Concentrado em pensamentos de noites passadas, levo susto com a loira vagaba que, aos berros, se joga sobre o morto. Descontrolada, agarra o corpo de JR alheia ao zum zum zum do ambiente. A cena pega mal, o caixão balança. Na certa, pela manhã, já sabendo do ocorrido, fez os últimos gastos no cartão de crédito dele, logo depois de entrar em seu apartamento e levar o jogo de porcelana inglês. 

Saudades eternas de JR, seu perfume, o velório. Amor que não se enterra e a derradeira cafungada, antes do sepultamento, pelo tubo da bic cristal numa carreira bem esticada de 15 cm sobre a tampa da privada do banheiro. Esta é pra você, meu amor.

Fernanda Teixeira