O céu cinzento prenunciava uma tempestade de Verão no começo de uma tarde abafada. O combinado era nos encontrarmos na portaria e subirmos juntos até o 13º andar de um prédio nos Jardins, casa de Lygia Fagundes Telles. Pontualmente todos estávamos lá - a diretora Yara de Novaes, os atores Clarisse Abujamra, Luciana Brites, Silvia Lourenço, Tuna Dwek, Clarissa Rockenbach, Júlio Machado e o produtor Fernando Padilha.
O importante encontro tinha um motivo especial: ouvir a autora do livro As Meninas falar sobre uma de suas obras mais famosas, que vai estrear no teatro com dramaturgia de Maria Adelaide Amaral, dia 1º de novembro, no Eva Herz. De olhar doce, sorriso largo, a escritora nos recebeu na sala. Sentou-se em uma poltrona, esticou as pernas em um banquinho – por conta da recuperação de uma operação feita em fratura no fêmur – e nós nos aconchegamos a seu redor, alguns sentados em cadeiras, outros no chão.
Sobre a mesa, duas garrafas de vinho do Porto, uma jarra de água, uma garrafa de café e salgadinhos para os visitantes. Em cima da escrivaninha, do outro lado da sala, uma Olivetti Lettera 32 verdinha e original (lembrei da minha, que anos atrás, muito ingênua, troquei por uma máquina, na época, mais moderna). Pelas estantes, seus livros Durante Aquele Estranho Chá e O Jardim Selvagem misturavam-se a CDs de Tom Jobim, Chopin, Nelson Freire. No cesto de revistas, uma edição de Carta Capital e outras revistas de literatura.
Yara, Lygia e Maria Adelaide
"Acho maravilhoso As Meninas irem para o teatro", disse, um jeito simples, quase humilde. Entre os relatos, sempre espaço para observações. Ela contou ter começado a escrever o livro em 1970 ("Acredito que o escritor deve ser um testemunho de seu tempo."), auge da Ditadura Militar. Falou da campanha feita atualmente em busca dos desaparecidos, considerados na época subversivos. "Casei duas vezes e este livro é dedicado a meu segundo marido, o ensaísta e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, morto em 1977."
O casal morava na rua Sabará, Higienópolis, perto das dependências do Doi- Codi, onde eram torturados os presos políticos. "Eu e Paulo saíamos às ruas e, às vezes, o quarteirão todinho estava fechado, cercado por cordas de segurança. Nós ouvíamos os gritos das pessoas sendo torturadas." Num desses dias, Lygia informou Paulo de que iria escrever o livro. "Já tinha em mente a personagem Lia, o Lião (Silvia Lourenço no palco), cujo amante estava na Argélia, uma baiana que agarrou a causa apaixonadamente. Revolucionária, quer salvar o Brasil."
A maconha já circulava entre os jovens e Lygia lembra da segunda personagem, Ana Clara (que será vivida por Luciana Brites), subversiva, séria, dura, chamada de Ana Turva pelas outras. "Se cabe aqui um comentário, ela poderia usar uma camiseta com a imagem do Che Guevara." Ela fala e nós escutamos, boquiabertos, quase sem piscar para não perder nenhum detalhe da história. "Ana Clara teve uma infância medonha, mãe prostituta, foi abusada pelo padrasto, se envolveu com um traficante rico e poderoso e tem horror a Lorena, a terceira personagem (Clarissa Rockenbach)". Ficamos sabendo que as outras duas meninas acham Lorena uma burguesinha chata, besta, mas no fim Lygia disse que ela tem um papel muito importante.
As três meninas imaginadas por Lygia Fagundes Telles moravam em um pensionato de freiras liberais. "Quando Ana Clara morre no pensionato é Lorena quem toma as primeiras providencias, começa a vestir a amiga. Lia diz, 'mas você é louca'. Lorena arruma a morta porque quer salvar as freiras da ira dos militares." Tem também a madre Alix (vivida por Clarisse Abujamra), personagem que apoia a revolução.
Paulo Emílio era um homem de esquerda, trotskista, chegou a ser preso. Nessa época, de um lado a esquerda mão de ferro de Luiz Carlos Prestes, de outro a direita radical de Plínio Salgado. Entre as lembranças, Lygia fala do filho Goffredo da Silva Telles Neto, também envolvido na causa política. Depois, vem a recordação de um panfleto recebido na rua: "Meti no livro, com as orientações de Paulo para ter cuidado, pois o livro poderia ser censurado por isso." Com o prazer de quem conseguiu subverter aquela ordem do sistema, ela lê este trecho de As Meninas, que colocou na boca de madre Alix. Curiosidade, diz que o censor não chegou a terminar o livro por tê-lo considerado muito chato. Que alívio!
Casaquinho de lã azul royal, calça marrom e sandália Croc bege, Lygia faz comentários sobre os horrores da Ditadura, depois de ler o trecho do panfleto, explicando uma ou outra expressão, como pau de arara. "Esta é a descrição da tortura, que acho da maior importância." Estudante de Direito do Largo São Francisco, freqüentava o curso ao lado de outras cinco ou seis estudantes ("éramos virgens") e 200 rapazes. "Sou de uma geração de vanguarda, levamos no peito as primeiras rajadas", diz ela, que se formou em 1941. "Minha mãe era pianista, mas fazia goiabada", fala, em tom levemente irônico, para mais tarde explicar a expressão mulher goiabada."
Getúlio Vargas ("que odiávamos") estava no poder e Ligya cursava o 3º ano da faculdade. Em uma passeata, ela e as outras meninas da classe abriram a manifestação empunhando bandeiras e amordaçadas em sinal de protesto. Getúlio havia proibido que as pessoas falassem em passeatas. "Fizemos lenços pretos e amarramos na boca. Foi a passeata do silêncio em resposta à ordem de Getúlio Vargas. Eu saí na frente, era subversiva. A polícia montada veio atrás e nós continuamos marchando, mudos. De repente, vejo um cara cair ao meu lado, borbulhando sangue. O comércio fechou as portas. Entrei numa leiteria e fiquei sabendo dos colegas feridos e daquele morto."
Nesses tempos, Lygia morava na rua 7 de abril com sua mãe. ("éramos pobres"), que pensou ter perdido a filha nesse episódio, pois o noticiário da TV informava que uma pessoa havia morrido. "Passei tudo isso, tive essa experiência e foi bom para mim escrever esse livro, publicado em 1973 e que levei três anos fazendo." Voltando à história do livro, relata que a polícia não poderia invadir o pensionato e encontrar Ana Clara, que era envolvida com drogas e tudo, morta. "Por isso, Lorena arruma a amiga, faz maquiagem e, junto com Lião, carrega seu corpo até uma pracinha, os bicos dos sapatos deixando sulcos por onde elas passavam. Sentam a amiga em um banco, recostam sua cabeça, e Lorena sai apagando as marcas deixadas na areia."
Enquanto a equipe da peça era embalada pelas histórias, caiu a tempestade lá fora. A diretora Yara de Novaes queria saber sobre a supremacia feminina, notada por ela no livro. Lygia explica que existia a tal mulher goiabada. "Não tinha a mulher que trabalhava. A mais importante revolução do século 20 foi a da mulher, dizia Miguel Reali."
A atriz Tuna Dwek (irmã Priscila, na peça uma freira com uma vida secreta, detesta os padres comunistas) comentou ser Lygia também uma transgressora do seu tempo. "Eu fugi desse negócio de mulher goiabada, mas o preconceito era fortíssimo. Éramos 5, 6 mocinhas na faculdade e hoje as fábricas têm muitas mulheres fazendo muito bem o trabalho dos homens."
De repente, a escritora – membro da Academia Brasileira de Letras - gira seu pensamento em direção a outro assunto: "Uma coisa me intriga, me desagrada no governo atual. É ver dona Marisa, mulher do Lula, que veio de baixo, era faxineira (sem nenhum preconceito, por favor), viajando com o cabeleireiro atrás, arrumando os cachinhos! A mulher vitrine, escrava do costureiro é horrível. Essa servidão em relação à moda é terrível. Uma vez na praia, conversando com Vinicius de Moraes, influenciada por uma amiga, pintei as unhas do pé com esmalte vermelho. O poeta disse que eu não precisava pintar."
Apaixonada por Jesus Cristo, Lygia declarou nunca ter tomado satisfação de seus maridos. Do primeiro, separou-se. O segundo, morreu. Essas cobranças de mulher, ela considera bobagens. O tema da conversa muda novamente: "Por falar em filho, hoje descobri outra notícia: Ronaldo só faz filho", brinca ela, sobre a questão da paternidade de uma possível criança do jogador de futebol. E o papo corria solto, voltava ao livro, às personagens.
"Quando terminei o livro estava em Barra de São João, onde está enterrado Casemiro de Abreu", diz, para logo em seguida recitar os trechos: "ai que saudades que tenho da aurora da minha vida.....da minha infância querida....que os tempos não trazem mais". Ficamos sabendo que Lygia caiu em prantos quando terminou de escrever o livro. Estava se despedindo de suas personagens, disse a contadora de histórias.
"Elas me habitaram por três anos. Hilda Hilst dizia que os personagens voltam. Ela era engraçada, era muito minha amiga." Entre um e outro caso, Clarisse Abujamra liga para Antonio Fagundes e passa o celular para que ela possa dar um alô para a grande diva. "Já no final, sessão tietagem imprescindível nessa ocasião.: todos pedimos autógrafos nos nossos exemplares de As Meninas. Emocionante. Voltei revigorada para a Arteplural.
(Fernanda Teixeira)