quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Irene, meu segundo furacão


Uma semana depois do forte tremor de terra sentido em Nova York, o furacão Irene estava para chegar. Nossa primeira vez na cidade reservava mais surpresas do que gostaríamos. Ser testemunhas e protagonistas do fato histórico causava expectativa e medo. Pelas ruas molhadas, guarda-chuvas comprados em camelô da esquina, eu, Sandra, Maria, Lydia e Anny resolvemos dar uma volta, comprar algo para comer mais tarde, quando estaríamos presas no quarto de hotel.

Enquanto caminhava pela Quinta Avenida lembrei do bilhete deixado naquela manha em cima da escrivaninha do hotel. Dicas de como agir, espécie de manual de sobrevivência. Era para ficarmos recolhidos, evitar o uso do elevador e, em caso de medo, poderíamos nos agrupar na recepção. Lanterninhas de led para todos os hóspedes, para uso nas escadas. Ordem para estocar água, alimentos e ....ufa, eles prometiam fazer de tudo para nossa segurança.
 
O vento aumentava de velocidade na mesma medida em que a temperatura do ar diminuía e o tempo piorava. Escurecia rapidamente. As entradas de acesso às estações de Metrô fecharam pela primeira vez na vida de Nova York. Ônibus também não circulavam. O Central Park exiba faixas com os dizeres closed. Sensação estranha, boca seca, mãos frias.

"Vão para casa agora e fiquem por lá tranqüilos até tudo passar", orientava o segurança da loja da Apple, normalmente aberta 24 horas, mas que fecharia as portas em breve. Respiração alterada, fotografo imensas nuvens negras acima de minha cabeça. Continuamos andamos pelas ruas assustadoramente vazias.
 
Na farmácia, fila para pagar. Xampu, escova e pasta de dente, o necessário para dormirmos, eu e Sandra, no hotel das nossas amigas. Difícil pegar táxi. Quando conseguimos, taxímetro desligado, o motorista cobrou preço fechado. Sempre alguém leva vantagem em circunstâncias assim, pensei, impressionada com o organização e rapidez dos americanos, pois a lista de preços das corridas ja estava impressa e plastificada, pendurada nas costas do banco do carona.

Do quarto do hotel, gastei bom tempo na janela observando a falta de movimento na rua. Sem o barulho constante das sirenes, só a fumaça branca saída dos bueiros continuava lá. Na TV, o assunto era só um: Irene. O prefeito ordenava evacuações em áreas de risco. Reportagens mostravam a população se preparando para enfrentar o pior. E nós, no no 15.andar de um edifício envidraçado, vulneráveis à aventura de dividir Manhattan com um furacão.
 
Entre ansiosas e receosas por estar ali e acompanhar situação sem precedentes nas nossas vidas, atendemos telefonemas da família em busca de notícias. Reunidas no quarto da Maria e da Lydia, relaxamos e bebemos a noite inteira várias garrafas de um vinho delicioso – o Copolla, comprado no lugar da água -, enquanto acompanhávamos pela TV a transformação do furacão em uma mansinha tempestade tropical. Confesso, fiquei com uma pontinha de decepção. Talvez mais aventura... .

Em tempo: este não foi o primeiro furacão da minha vida. O nome dele era George, cujos estragos vimos em Key West, na Flórida, mas essa história fica para outra crônica.

(Maria Fernanda Teixeira)

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O dia em que desapareci

Situação inusitada aconteceu comigo em 2011. Viajei com um amigo para Punta del Leste, no final do ano, sem me preocupar com a documentação. Carteira de identidade vencida, embarquei com o passaporte. Na volta, preocupei-me em ir ao Poupatempo da Praça da Sé tirar o novo RG, o velho tinha mais de 10 anos. Fiz foto, juntei a papelada exigida e, no dia marcado, fui buscá-lo. Como havia mudado de casa, iria também ao Detran, para trocar o endereço do documento do carro.

- Deu problema, decretou a atendente, sem esboçar expressão alguma, cara de quem detém o comando da situação.

- Vai ver que foi com a documentação, continuou a moça. Depois de pegar senha e esperar até a semana seguinte, voltei ao Poupatempo e um rapaz repetiu a informação:

- Deu problema, consta que a senhora é desaparecida, precisa ir no DHPP.

Polícia Federal, pensei. Departamento de Homicídios e Proteçāo à Pessoa. Gelei. Respiração curta, decidi passar antes em casa para pegar um documento original, na certa eles pediriam. Para quem é da minha geração, viveu de perto os tempos difíceis da Ditadura, os amigos torturados, o medo no ar, ir à Polícia não era exatamente um programa. Tinha um gosto amargo.

No caminho, um mundo passou pela minha cabeça. Lembrei dos cartazes na padaria perto de casa, anos 70, ao lado de pôsteres da seleção de futebol campeã do mundo, cartazes com fotos dos chamados subversivos, o jornalista Daniel Aarão Reis, meu primo, entre eles, todos seqüestradores do embaixador alemão. Eu, mãos dadas com minha mãe, evitava até olhar para os procurados.
Quando cheguei em casa, elevador quebrado, subi 9 andares a pé. Da mesma forma, encarei as escadas para chegar à rua. Tomei um ônibus, a respiração ainda ofegante, desci no bairro da Luz, onde fica a Polícia Federal. As mãos frias, boca seca, um arrepio de pânico ao imaginar que teria de encarar meus fantasmas e entrar no prédio.

- Coragem, vamos!, falei para mim mesma, tentando convencer minhas pernas a se movimentarem. Entrei no elevador, parei no andar indicado. Clima sinistro, deserto. Depois de atravessar o imenso hall vazio, reparei numa moça lixando as unhas. No trajeto até a sala onde teria de ir, cruzei com pessoas desocupadas, xícaras de café nas mãos, jogando conversa fora. Continuei a andar até que me deparei com a placa Pessoas Desaparecidas no alto da porta de uma sala. No fundo, um rapaz de cabelo rastafari acenou com um gesto para que eu aguardasse. Era como se eu precisasse esperar a minha vez na fila.

Quando, enfim, ele me chamou, segundos pareciam uma eternidade enquanto digitava, os olhos fixos na tela do velho e empoeirado computador, e voltava, sem emitir som algum, a me encarar. A cena, para meu desespero, repetiu-se algumas vezes.

- O que você estava fazendo em 1998?, disparou, rápido como uma metralhadora.
Antes mesmo que conseguisse responder, a respiração presa depois do susto, ele engatou, ar de desaprovação:

- Porque consta queixa de desaparecimento seu. A sra viajou?

Atônita pelo inusitado da situação, puxei pela memória, viajo bastante, mas deu branco na hora. Nervosa, não conseguia lembrar nem onde estivera ontem.

- Vai ver estava me escondendo de algum namorado, brinquei, tentando relaxar.
O homem voltou-se para a tela do computador e continuou a digitar, olhar para mim, digitar, aquele som irritante ecoando em meus ouvidos.
- Descobri, disse, o volume da voz levemente alterado. Tem um cara com o mesmo RG da senhora, mas sem o dígito.
Respirei aliviada enquanto o homem explicava que uma confusão deveria ter ocorrido no sistema para que fossem registrados dois números iguais e constasse meu desaparecimento.

- Já resolvi o problema, disparou, para logo em seguida, pensativo, emendar uma pergunta:

- Em 2005 a senhora perdeu o documento, confere?
- É fui furtada há alguns anos.
- Pronto, está tudo bem. Pode voltar ao Poupatempo que já tirei do sistema a informação incorreta. Seus namorados agora vão poder achar a senhora, disse, um sorriso irônico.

As unhas roídas, senti uma gota de sangue brotar na cutícula machucada. Sem dar atenção à dor no dedo, deixei o prédio imediatamente. Peguei o Metrô na Luz, saí na Sé, de volta ao Poupatempo, de onde fui embora com o novo RG.
(Maria Fernanda Teixeira)