Não avise
a Polícia!
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Soldados, soldados, soldados! Até hoje
me pergunto por que não me
tranquei em casa com os dois. Eles eram muitos soldados. Passavam sentados na
caçamba de caminhões ou em tanques de guerra, com canhões de 10 metros. Nos capacetes de ferro, as letras PME
em maiúscula, pintadas de branco. Em
posição de combate, posavam sobre
as escotilhas dos veículos.
Em frente ao quartel general do Exército, a concentração de policiais e
equipamentos bélicos produzia euforia nas crianças. Outono de 1964, São Paulo, rua Manoel da Nóbrega. Flávio
observava da garagem do sobrado o vaivém dos
soldados descendo e subindo a rua. Naquele dia foi diferente da troca de guarda diária. O tom monocromático
das roupas destoava do vestido vermelho de bolinhas brancas da Nanda.
Ir com eles até a padaria poderia nos salvar do pesadelo? Cabelo cortado rente, Flávio imitava os gestos e o jeito cadenciado de andar
dos recos. Não andava, marchava, pisava
duro, um pé depois o outro. O vento
varria árvores nervosas e meus dois
filhos brincavam na calçada de
casa. A multidão cobria o asfalto. Nossa, que perigo! Tum-tum,
Tum-tum, Tum-tum, o peito arfando, as mãos soldadas nas das crianças, decido furar a
concentração humana
espalhada pela rua, em frente à nossa casa. Com licença, perdão, posso passar? Cuidado, estou com filhos pequenos!
Não se pendura, menino, assim não aguento seu peso. Levados,
ele e a irmã, 2 e 4 anos, se esbaldavam
enquanto eu olhava ao redor. O céu chumbo-oliva.
Vamos,
crianças, não saiam de perto, não soltem as mãos! Armada de coragem, segui, empurra daqui e dali, à procura de brechas entre policiais fardados
empunhando fuzis e cacetetes. Óculos
gatinho, tailleur rosa pálido,
cabelo penteado, batom, leve rouge nas maçãs do
rosto - porque eu gostava de sair de casa arrumada, nem que fosse para ir até a esquina –
resolvi encarar a confusão. Uma
esquisitice no estômago, fomos comprar pão. Tentativa de mudar de cenário. Licença, licença, por gentileza, o senhor
pode afastar um pouco, preciso passar! Com
toques nas costas dos soldados, abria espaços.
Logo alcançamos a padaria.
Meia dúzia de pãezinhos franceses, por favor!
Saíram agora? Um guaraná e dois drops dulcora também! Exausta, uma luta cuidar
deles correndo no chão
engordurado. No balcão,
homens bebiam cerveja, os ouvidos grudados no rádio de
pilha. Cheiro azedo de bebida misturado à
fritura. Pronto, crianças ajudem com os pacotes! Vamos embora, O que está olhando, Nanda? Esses retratos engraçados, mãe! Vire pra lá, depressa, não quero que nos vejam, pode chamar atenção. Puxei
os dois.
Sem entender por que era impedida de olhar as
fotos, a pequena obedecia mas nunca mais esqueceria a estranheza daquele tremor
suado nas mãos da mãe. Curiosa, na certa ficou com o desejo de ver um
bocadinho mais as imagens. Quem sabe encontrar entre as fotografias a do primo
mais velho, intelectual, barba e óculos, que
no futuro daria aulas na universidade. O nome dele, com certeza, ela já ouvira sussurrado quando os adultos conversavam
pensando que as crianças
brincavam desatentas. Um fiapo de medo mesclado com orgulho tirou o embrulho do
estômago. Eu mesma mais nunca vi
o primo Daniel. Quando encontrava seus pais nas férias
cariocas, instaurava-se um silêncio trágico.
Eu fingia não ver e
queria esconder dos meninos, criança é curiosa, pergunta tudo. Mas o cartaz estava lá - pregado com durex no azulejo ensebado -, revelando
fotos três por quatro ampliadas, com
rostos de homens e mulheres em preto e branco, e dizeres: Terroristas e Subversivos Procurados – Ajude a Proteger sua Vida e a de seus Familiares – Avise a Polícia.
Quando cresceram um pouco, encontrei as palavras certas para explicar a meus
filhos por que a polícia não gostava do nosso primo, um dos
"Procurados" do cartaz. Tinha pegado em armas, havia sequestrado o
embaixador alemão e fora exilado.
Fernanda Teixeira