Ângelo Madureira, Ana Catarina Vieira e companhia reapresentam a mais
recente criação onde lantejoulas são definitivamente as protagonistas
Rafael Ventuna
Especial para Blog do Dudu
Para quem perdeu a estreia de “Mapa Movediço” na semana passada, a companhia de Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira reapresentam de hoje a domingo, no Teatro Cacilda Becker, uma curta temporada do espetáculo de dança contemporânea, que integra a programação das atividades comemorativas dos 10 anos da companhia. E para quem não acompanhou a trajetória da companhia ao longo desta década, fica a dica: lantejoulas dançam.
Quando no final da década de 1990 Ângelo e Ana
Catarina se encontraram artisticamente, se propuseram a fundir o popular e o
erudito; o nordestino e o sudestino; o feminino e o masculino; o côncavo e o
convexo. É aí que entra uma nova linguagem, a linguagem da lantejoula.
O gramático Pasquale nos orienta que a linguagem está
presente em todas as atividades comunicativas, sendo ela a capacidade de se
comunicar por uma língua, que por sua vez é um sistema de
signos convencionais. No caso, lantejoulas. Ângelo e Ana Catarina dialogam por
meio de lantejoulas.
Começam por usar a forma mais popular “lantejoula” e
abandonar “lentejoula”, como registram os dicionários. Usar “lente” não lhes
parece necessário, porque a lantejoula para eles não é um instrumento-objeto; é
sim um corpo irredutível, um radical, ao qual se acrescentam prefixos e
sufixos. Com lantejoulas formam-se verbos, substantivos e adjetivos. Nomes e
pronomes. Frases inteiras.
Diante disso, nos trabalhos anteriores da companhia há
uma obsessiva sistematização do processo de criação, a exemplo de “O Nome
Científico da Formiga” (2007) e “Baseado em Fatos Reais” (2010). Para chegar à
coreo-grafia (escrita com movimentos), os intérpretes já se serviram de
foto-grafias (escrita com luz) para propor uma sequência ordenada de imagens
estáticas até chegar ao movimento. Ou seja, do fragmento ao todo. As
lantejoulas operam no mesmo sistema: só se tornam um todo quando agrupadas,
quando são penetradas por agulha e linha até formarem um bordado.
Percebe-se ainda na companhia um esforço em apresentar
uma orto-grafia (escrita correta), talvez para justificar a já conquistada
cali-grafia (escrita bela).
RE-FORMA
Em “Mapa Movediço”, a companhia mostrou-se ousada e
corajosa. A começar pela honestidade de Juliana Augusta Vieira que propôs
apenas uma luz geral no palco sem rotunda e coxias. Em cena, por mais paradoxal
que seja, só se vê um processo de construção coreográfica desprovida de
narrativa. Os semblantes dos bailarinos anulam a figura do intérprete e o
figurino com calças de veludo deixam as lantejoulas livres para dançar. E como
dançam as lantejoulas!
O trabalho ainda apresenta duas peculiares e
importantes características. A primeira é a composição da trilha sonora que é
feita em tempo real com microfones que captam o som das lantejoulas, passos,
respiração. A segunda é oferecer ao público a oportunidade de ver dança para
além do corpo humano, isto é, ver dança em um corpo-lantejoula.
O cenário também é construído a partir das formas e
paisagens que surgem quando as lantejoulas dançam em sinergia com o movimento
dos bailarinos, porém são as lantejoulas as protagonistas que dão forma (e
re-forma) ao espetáculo e constituem a estrutura gramatical pela qual Ângelo
Madureira, Ana Catarina Vieira e companhia articulam seu vocabulário.
MINIBIOGRAFIA
Rafael Ventuna é jornalista e crítico, com
especialização em Economia e Gestão de Bens Culturais pela Fundação Getulio
Vargas. É também pesquisador de Dança Contemporânea Brasileira.
foto Inês Correa