Minha avó Carmen veio me visitar ontem à noite, de madrugada me acordou, olhos de um azul suave como as tardes carinhosas do começo do Verão. Os dentes branquinhos, descortinou uma saudade de coisas que nao vivi. Nada disse, sorriu, depois foi embora como chegou, devagarinho. Restou um perfume de violeta e a lembrança de sua pele chocolate, cor de índio.
Assim que partiu, avistei longe uma paisagem de felicidade. Fiquei com a sensação reconfortante do reencontro com alguém com quem não tive tempo suficiente de conviver. Agora sei como eram fortes aqueles sentimentos.
Eu e meus irmaos costumávamos brincar nos fins de semana no imenso quintal da casa dela e do vovô Jayme, na rua Fernando de Albuquerque, entre Augusta e Haddock Lobo.
Éramos muito pequenos, sempre no jardim, atrás de uns bichinhos minúsculos que nunca mais vi, espécie de tatu-bola, que meu primo mais velho gostava de matar colocando fogo em todos amontoados, apenas pelo sádico prazer de ver minha prima chorar de dó.
No porta-retrato, a foto em branco e preto amarelada guarda instantes iguais a esses no casarão dos meus avós - meu pai elegante, calça de alfaiataria; minha mãe lindíssima, sorridente, cabelo Chanel castanho escuro, uma saia bem cortada.
Gosto de ter fotografias antigas e escuras na minha nova casa cheia de luz. Elas trazem surpresas, convidam visitas queridas como a da minha avó Carmen.
Hoje vou dormir cedo, torcendo para abrir a porta do apartamento e me surpreender com as piadas de meu pai, que foi um grande e ingênuo gozador.
Agora, licença, vou pegar a bolsa que tenho que ir.