sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Não há rival em matéria de risos

Por Maria Lúcia Candeias
Doutora em teatro pela USP
Livre Docente pela UNICAMP

Não é à toa que o ator se chama Norival Rizzo.
No momento não há um espetáculo em cartaz – especialmente monólogo – mais divertido do que “O Homem das Cavernas” do americano Rob Becker, que está em cartaz no Teatro Renaissence. É de morrer de rir. Não só com homens e mulheres das cavernas como com os de hoje em dia. O texto se dedica principalmente às diferenças entre masculino e feminino com acuidade excepcional. Impossível não se identificar com todas as mulheres descritas, nem deixar de reconhecer todos os homens que se conhece. É fora de série. Imperdível!!!!!!!

A única pena é o horário alternativo, sábados às 23hs30. Os jovens baladeiros e notívagos adoram, mas para os mais coroas, eu juro que não vão se cansar de uma boemia extra, porque é demais. Aliás a produção está estudando um horário às 18hs no domingo.

Além do intérprete maravilhoso, a direção de Alexandre Reinecke capricha em tudo. Mescla o monólogo com projeções (Chris Lui) que apresentam figurinos belíssimos (Carol Mariottini) e não deixa Norival sossegar nenhum minuto, transitando em frente do cenário, diríamos cubista (Cenário Brasil), porque como a peça mescla primitivo e moderno.

Impossível deixar de mencionar que Reinecke foi ainda responsável pela tradução que obviamente implicou em adaptações para o contexto brasileiro.E o resultado é que Rob Becker fica parecendo amigo de fé, irmão, camarada.
Apressem-se porque vai lotar.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Trauma de infância

Por Douglas Picchetti, novo integrante da Arteplural

Um cão no local de trabalho ameniza e descontrai o ambiente, aliviando o stress e a correria. Independente de você estar atolado de trabalho, ele estará lá, abanando o rabo e pronto para brincar e receber carinho a qualquer momento. Estou trabalhando em uma empresa que tem um mascote. Chama Dudu, é um cão basset.
É, consegui um emprego. Confesso que foi tudo diferente do que eu relatei no post do Desabafo de um Desempregado.

Meu sonho sempre foi ter um cão. Já deixei meus pais em situações desagradáveis de tanto me dizerem não. Minha mãe tem remorso até hoje, mas aqui em casa ninguém gosta de animais. E de fato, uma criança de 6 anos não vai limpar o cocô, tampouco dar comida ou levar ao veterinário. Elas prometem, mas é mentira. Eu prometia, era mentira.

Encontrei, portanto, algumas alternativas para substituir meu apreço por cães. Já que o filo canino é proibido, comecei a optar pelos peixes. Ao todo foram 3 peixes-betas, todos morreram. Um porque não tomava sol, outro porque ficou velho e outro, quando eu cheguei em casa, estava despedaçado no aquário. Não sei o motivo até hoje. Na verdade eu não lembro o nome deles, se é que eles tinham. Os peixes não conseguem demonstrar nenhuma forma de carinho pelas pessoas, e eu, no caso, também não demonstrei por eles.

Depois foi a vez das tartarugas de aquário. Eram duas, muito queridas, Clotilde e Geraldo. Com elas, o meu envolvimento foi maior. Dá pra pegar na mão, brincar, colocar pra andar no sofá. Eu sempre enfiava o dedo na ração e dava pra elas morderem. Limpar o aquário não era um prazer: elas fediam muito. Em dado momento, Clô e Gê estavam grandes demais para a casinha delas e resolvemos, então, despachá-las de volta para o pet shop.

Entrei numa fase roedora. Adquiri o Billie Pizza, meu primeiro rato (É, tem mais). Rato. Não era hamster, porquinho da índia ou ferret. Era um rato branco, com olhos vermelhos que eu peguei da faculdade de psicologia da minha prima. Ao todo, Billie tinha 30 centímetros. Ele era dócil, ficava feliz todas as vezes que alguém chegava. Foi o que mais se aproximou de um cão. Só não abanava o rabo gelado de 15 cm.

O problema é que viver com Billie era muito trabalhoso. Muito grande, não podia circular pela casa porque minha mãe é neurótica. Então, ele era fadado a viver dentro de uma gaiola envolto a serragens e suas necessidades fisiológicas. Foi quando recebi uma proposta da minha diarista, que levaria Billie para viver com ela em uma caixa d'água vazia. Topei: lá com certeza ele foi mais feliz.

Depois de despachar Billie, ataquei os topolinos. Conheci em um pet-shop. O animal era minúsculo, cabia na palma da mão e não chegava ao tamanho da boca do Billie. Porém, muito arisco. Não gostava de carinho e quando alguém o pegava na mão, mordia. Fugia da gaiola, se escondia em baixo da secadora de roupas. Solineuza, uma menina, durou 2 anos e meio. Faleceu em uma tarde fria, de um final de semana, enquanto eu jogava baralho com meus primos.
Em meio a tristeza, fizemos velório, enterro e tudo acabou sendo uma grande diversão.

Até hoje eu não tive um cachorro. Na verdade, eu não daria conta de cuidar de um. Quando eu tiver minha independência financeira para pagar uma pet-babá, eu providencio. Por enquanto, fico com o Dudu.
Pelo menos pet-shop, vacina, limpeza, banho, ração, (...) não é comigo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Chega de Pessimismo!!!

Por Maria Lúcia Candeias
Doutora em Teatro pela Usp
Livre Docente pela Unicamp

Quando João Gilberto gravou chega de saudade tinha toda a razão. Não eram só as canções vigentes mas também o modo exagerado de cantar que estavam em questão. A temporada teatral, especialmente do segundo semestre deste ano, está merecendo esse protesto contra o pessimismo vigente. O Brasil sempre foi o país da esperança, do afeto, do otimismo, do bom humor. Não dá pra entender porque abraçar o pessimismo europeu de um Beckett e de outros tantos autores internacionais que caíram nas graças das produções do momento. Afinal nossa participação nas duas guerras foi irrisória, a crise econômica internacional foi mil vezes melhor que no Velho Mundo e desde os fins do século 19 a humanidade já sabe que a ciências humanas estão longe de ser infalíveis.

Também já se tomou consciência naquela época de que a comunicação humana é imperfeita, visto que não conseguimos entrar e sair dentro do mundo do outro e, às vezes, nem do nosso próprio mundo. Mas vale lembrar que, se mesmo num ato de amor, não sabemos exatamente como o outro está sentindo isso não impede que tal ato nos faça felizes e alegres. Não é porque a comunicação é imperfeita que não é bom ter amigos, papear e sair juntos.

Que Samuel Beckett tenha feito grande sucesso porque as pessoas começaram a compreender esses fenômenos a partir do trabalho da Gestalt, nos parece verdadeiro. Mas Esperando Godot foi escrita em 59. Faz tanto tempo, que me lembro do inesquecível professor Anatol Rosenfeld (falecido em 1973) explicar que a “humanidade chora a perda do absoluto”.

Chega de tanto pessimismo e tanto monólogo. Contamos com uma safra de excelentes dramaturgos que devem ter peças bem menos choronas dentro da gaveta: Sérgio ROveri, Newton Moreno, Mário Viana, Jarbas Capusso, Gilberto Amêndola, Antonio Rogério Toscano, Naum Alves de Souza, Franz Kepler, Antonio Rocco, Samir Yazbek, fora os que não estou lembrando e os mais montados como Adelaide Amaral, Marta Góes e tantos outros e outras.

Será que esse tipo de repertório ora em cartaz traz ou tira público dos teatros?
Pelo que tenho ouvidos dos críticos cansa qualquer um.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Da série Meus Homens e Minhas Mulheres - Irmãos


Um é magro e bem alto. O mais baixo não é magro nem gordo. Tipos diferentes, com dois anos de diferença de idade. Quando crianças, o mais velho tinha o apelido de Pink Panther. O mais moço, a irmã às vezes chamava de Batatinha (também por conta de um desenho animado, A Turma do Manda-Chuva). Os dois gostavam de Perdidos no Espaço, enquanto a irmã preferia O Sítio do Picapau Amarelo. Músculos no lugar certo, um deles gostava de nadar e fazer esportes. Mais chegado em livros, o segundo sempre foi mais tímido.

Um puxou o pai, piadista. O outro a mãe, bem distraído. Chegava a cumprimentar as pessoas com um tchau, acredite você, e nunca saía sem dizer "obrigado" à mãe – sem ter motivo para agradecer, a não ser pelo fato de ter vindo ao mundo. Maria Eduarda era para ser o nome de um, se nascesse mulher, é óbvio. Joãozinho era como a irmã queria que se chamasse o outro.

Sensível, o olhar assustado, ele não sabia o que fazer quando a irmã mais velha dizia que iria embora, e saía pelo portão rua afora, virando a esquina. Pura maldade de criança. Os dois eram levados, se penduravam nos puxadores da cortina, saltavam em vôo rasante de Tarzan pela sala, na frente das visitas, para vergonha da mãe. Terríveis, aproveitaram bem a infância.

Habilidosos (não foi à toa que ambos se formaram engenheiros), construíram uma casinha em cima da árvore em frente à casa em que moravam com os pais e a irmã. Era um sobe e desce danado da turma toda. A brincadeira na rua rolava solta. Carrinho de rolimã, bicicleta, esconde-esconde, clubinho ou futebol. Naqueles tempos, as ruas não significavam tanto perigo. Os acidentes aconteciam mais em função das brincadeiras.

Os amigos moravam na mesma rua, no máximo no outro quarteirão. Um quebrou o braço; o outro, a cabeça. De opinião forte, o que sofreu a queda mais perigosa preferiu voltar para casa com a cabeça toda enfaixada a usar uma redinha mais delicada sugerida pelo médico. Levou vários pontos. Ficou em observação. E assim eles cresceram, cada um a seu modo, bem-educados, sensíveis e ligados na família.

Certo dia, a irmã voltava para casa e surpreendeu-se com a quantidade de gente desconhecida circulando pela sala. Na porta de entrada, como se fazendo de segurança, a namorada do mais velho tranquilizou-a: "Todos participantes da pirâmide, fique tranquila". Dezenas de japoneses entravam e saíam. Foi a forma descolada para juntarem o primeiro dinheiro pro casório, presumo.

Os dois casaram-se quase no mesmo ano. Foi por pouco. A irmã foi madrinha de ambos. Logo ela, pouco chegada a cerimônias do tipo. Mesmo assim, chorou nas duas vezes. Um teve duas filhas; o outro, dois meninos, um deles batizado pela irmã num divertido sorteio ganho também pelo sogro, Serjão. Os padrinhos freqüentaram curso na Igreja Nossa Senhora do Brasil. Os noivos cabularam. Conseguiram o certificado. Até hoje não se sabe como. Da linhagem de pais que fazem questão de participar de tudo da vida dos filhos, sempre estiveram presentes nas mais corriqueiras atividades familiares. Sair sozinhos com as crianças sempre foi diversão.

Quando o pai morreu, se uniram mais ainda à irmã. Talvez por um sentimento masculino de paternidade ou responsabilidade, arrisco. Hoje visitam sempre a mãe e, mesmo morando atualmente no Rio, o mais moço está toda hora em São Paulo. Procura ficar perto da família no fim de semana. Inteligentes, talentosos, amorosos - cada um a sua maneira -, fazem a irmã encher a boca para falar deles. Maior orgulho, pode crer. Seus nomes? Flávio Pinto Teixeira (casado com Maria da Penha de Sá Teixeira) e Roberto Pinto Teixeira (casado com Maria de Lourdes Morello Teixeira). São pais de Ricardo e Pedro de Sá Teixeira, Ana Vitória Morello Teixeira e Ana Helena Morello Teixeira.

(Fernanda Pinto Teixeira)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Da bermuda rasgada a bota bico fino



Não é por nada, não, mas não costumo jogar. Desligada, esqueço que existe esse tipo de divertimento/passatempo. Assim, nunca penso em ganhar na loteria. Acontece que na modalidade amigos tirei o bilhete premiado. Sempre que sobrar um tempinho, vou dedicar algumas linhas a alguns deles, os mais antigos talvez. Posso mudar de ideia, entretanto hoje começo por uma pessoa de personalidade forte, interessante e que esteve comigo nos momentos mais importantes da vida.

Bancária e instrumentista, agora optou pela segunda carreira. Graças a isso, não acorda mais de mau-humor, atrasada, reclamando de tudo. Ó vida, ó azar, a imagem da hiena Hardly do desenho animado desgrudou dela, musicista de primeira. A montanha de compromissos continua. Difícil ela aceitar de primeira um programa. Festa, jantar? Não sei se posso, tenho que ensaiar, arrumar o quarto, fazer uma trilha, produzir aquela faixa.

Bermuda abaixo do joelho, tênis all star gasto, camiseta rasgada com logo de grupo de rock. Contrabaixo no ombro, a cara amarrada, nosso primeiro encontro não foi dos mais amigáveis. Tocava na banda de uma amiga em comum, de quem eu era produtora - hoje cantora com músicas direto na rádio. Afinidades musicais descobertas, começamos a ir juntas a shows, então ficamos amigas.

Como todos os amigos, dividimos bons e maus pedaços, no tempo de vacas mais magras. Ela trabalhava na Caixa Econômica Federal, agência Cambuci, e já tinha uma banda de reggae de meninas (a Shallabal). Eu tinha acabado de trocar a Folha da Tarde pelo Shopping News, onde segui escrevendo sobre música.

Passam cenas na cabeça, da gente em Camburi, da visita a sua mãe na UTI, da missa de sétimo dia de meu pai (ela e a amiga em comum Liane Rossi), da gente comprando bota de bico fino para ela fazer show, da noite que fomos assistir ao imperdível Os Sete Afluentes do Rio Ota, com cinco horas de duração, o encontro com a maravilhosa Maria Luisa Mendonça no hall do antigo teatro Hilton (a atriz "lindona", como ela chama seus queridos, e de sotaque carregado, frequentou muito a Arteplural – almoçava com a gente, se esparramava no sofá, via novela no Vale a Pena ver de Novo, conversava com minha mãe e sempre mandava beijos pro Dudu).

Da Vila Madalena aos espaços mais alternativos da cidade, como Madame Satã, acompanhei vários de seus shows com as muitas bandas com quem já trabalhou, de grupo de reggae a de forró. Ex-baixista de Paulo Miklos, é produtora musical de gosto refinado. Recentemente, assinou a produção do novo CD de Moisés Santana. Agora, ao lado de Gigi Trujilo, encabeça o original projeto Chalalá é Chic. Guardem esse nome, que ainda vamos ouvir falar muito dele.

Sensível, não raro fica com a emoção à flor da pele. No dia em que castrou seu gato, chegou em casa chorando que nem um bezerro desmamado. "Eu não tinha o direito", falava e de debulhava em lágrimas. Não poupava cuidados e atenção ao Boris, seu cão doente.

O lado esquentado também conta - hoje ela equilibra bem os dois. Batalhadora, comprou apê, juntou mais dindim e depois investiu numa casa antiga, que reformou toda para fazer um belo estúdio de gravação - que abriga também escritório com lugar para seus vinis e aparelho de videocassete - num bairro gostoso da cidade. Os amigos brincam que ela desencalhou. Ri, acho que concorda. Também falam que não gosta de ligar o ar condicionado no auge do Verão. Para economizar. Sorri, sem negar. Responsável e organizada, a criativa pisciana Gigi Magno tem seus métodos para realizar seus projetos. E que projetos! Parafraseando o escritor Mário Prata, ela inaugura a lista de "meus homens e minhas mulheres".

(Fernanda Teixeira)

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Para desacelerar

Quando vou me deitar, antes de dormir, tenho um ritual para desacelerar a cabeça e o coração. É quando sinto o indescritível prazer de desligar todos os barulhos e escutar meus pensamentos. Ou ler – mesmo que seja pela centésima vez – o Poema em Linha Reta, de Fernando Pessoa, ou folhear algum detalhe que tenha passado despercebido de As Flores do Mal, de Baudelaire.

(Fernanda Teixeira)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Na sala com Lygia Fagundes Telles

O céu cinzento prenunciava uma tempestade de Verão no começo de uma tarde abafada. O combinado era nos encontrarmos na portaria e subirmos juntos até o 13º andar de um prédio nos Jardins, casa de Lygia Fagundes Telles. Pontualmente todos estávamos lá - a diretora Yara de Novaes, os atores Clarisse Abujamra, Luciana Brites, Silvia Lourenço, Tuna Dwek, Clarissa Rockenbach, Júlio Machado e o produtor Fernando Padilha.

O importante encontro tinha um motivo especial: ouvir a autora do livro As Meninas falar sobre uma de suas obras mais famosas, que vai estrear no teatro com dramaturgia de Maria Adelaide Amaral, dia 1º de novembro, no Eva Herz. De olhar doce, sorriso largo, a escritora nos recebeu na sala. Sentou-se em uma poltrona, esticou as pernas em um banquinho – por conta da recuperação de uma operação feita em fratura no fêmur – e nós nos aconchegamos a seu redor, alguns sentados em cadeiras, outros no chão.

Sobre a mesa, duas garrafas de vinho do Porto, uma jarra de água, uma garrafa de café e salgadinhos para os visitantes. Em cima da escrivaninha, do outro lado da sala, uma Olivetti Lettera 32 verdinha e original (lembrei da minha, que anos atrás, muito ingênua, troquei por uma máquina, na época, mais moderna). Pelas estantes, seus livros Durante Aquele Estranho Chá e O Jardim Selvagem misturavam-se a CDs de Tom Jobim, Chopin, Nelson Freire. No cesto de revistas, uma edição de Carta Capital e outras revistas de literatura.

Yara, Lygia e Maria Adelaide

"Acho maravilhoso As Meninas irem para o teatro", disse, um jeito simples, quase humilde. Entre os relatos, sempre espaço para observações. Ela contou ter começado a escrever o livro em 1970 ("Acredito que o escritor deve ser um testemunho de seu tempo."), auge da Ditadura Militar. Falou da campanha feita atualmente em busca dos desaparecidos, considerados na época subversivos. "Casei duas vezes e este livro é dedicado a meu segundo marido, o ensaísta e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, morto em 1977."

O casal morava na rua Sabará, Higienópolis, perto das dependências do Doi- Codi, onde eram torturados os presos políticos. "Eu e Paulo saíamos às ruas e, às vezes, o quarteirão todinho estava fechado, cercado por cordas de segurança. Nós ouvíamos os gritos das pessoas sendo torturadas." Num desses dias, Lygia informou Paulo de que iria escrever o livro. "Já tinha em mente a personagem Lia, o Lião (Silvia Lourenço no palco), cujo amante estava na Argélia, uma baiana que agarrou a causa apaixonadamente. Revolucionária, quer salvar o Brasil."

A maconha já circulava entre os jovens e Lygia lembra da segunda personagem, Ana Clara (que será vivida por Luciana Brites), subversiva, séria, dura, chamada de Ana Turva pelas outras. "Se cabe aqui um comentário, ela poderia usar uma camiseta com a imagem do Che Guevara." Ela fala e nós escutamos, boquiabertos, quase sem piscar para não perder nenhum detalhe da história. "Ana Clara teve uma infância medonha, mãe prostituta, foi abusada pelo padrasto, se envolveu com um traficante rico e poderoso e tem horror a Lorena, a terceira personagem (Clarissa Rockenbach)". Ficamos sabendo que as outras duas meninas acham Lorena uma burguesinha chata, besta, mas no fim Lygia disse que ela tem um papel muito importante.

As três meninas imaginadas por Lygia Fagundes Telles moravam em um pensionato de freiras liberais. "Quando Ana Clara morre no pensionato é Lorena quem toma as primeiras providencias, começa a vestir a amiga. Lia diz, 'mas você é louca'. Lorena arruma a morta porque quer salvar as freiras da ira dos militares." Tem também a madre Alix (vivida por Clarisse Abujamra), personagem que apoia a revolução.

Paulo Emílio era um homem de esquerda, trotskista, chegou a ser preso. Nessa época, de um lado a esquerda mão de ferro de Luiz Carlos Prestes, de outro a direita radical de Plínio Salgado. Entre as lembranças, Lygia fala do filho Goffredo da Silva Telles Neto, também envolvido na causa política. Depois, vem a recordação de um panfleto recebido na rua: "Meti no livro, com as orientações de Paulo para ter cuidado, pois o livro poderia ser censurado por isso." Com o prazer de quem conseguiu subverter aquela ordem do sistema, ela lê este trecho de As Meninas, que colocou na boca de madre Alix. Curiosidade, diz que o censor não chegou a terminar o livro por tê-lo considerado muito chato. Que alívio!

Casaquinho de lã azul royal, calça marrom e sandália Croc bege, Lygia faz comentários sobre os horrores da Ditadura, depois de ler o trecho do panfleto, explicando uma ou outra expressão, como pau de arara. "Esta é a descrição da tortura, que acho da maior importância." Estudante de Direito do Largo São Francisco, freqüentava o curso ao lado de outras cinco ou seis estudantes ("éramos virgens") e 200 rapazes. "Sou de uma geração de vanguarda, levamos no peito as primeiras rajadas", diz ela, que se formou em 1941. "Minha mãe era pianista, mas fazia goiabada", fala, em tom levemente irônico, para mais tarde explicar a expressão mulher goiabada."

Getúlio Vargas ("que odiávamos") estava no poder e Ligya cursava o 3º ano da faculdade. Em uma passeata, ela e as outras meninas da classe abriram a manifestação empunhando bandeiras e amordaçadas em sinal de protesto. Getúlio havia proibido que as pessoas falassem em passeatas. "Fizemos lenços pretos e amarramos na boca. Foi a passeata do silêncio em resposta à ordem de Getúlio Vargas. Eu saí na frente, era subversiva. A polícia montada veio atrás e nós continuamos marchando, mudos. De repente, vejo um cara cair ao meu lado, borbulhando sangue. O comércio fechou as portas. Entrei numa leiteria e fiquei sabendo dos colegas feridos e daquele morto."

Nesses tempos, Lygia morava na rua 7 de abril com sua mãe. ("éramos pobres"), que pensou ter perdido a filha nesse episódio, pois o noticiário da TV informava que uma pessoa havia morrido. "Passei tudo isso, tive essa experiência e foi bom para mim escrever esse livro, publicado em 1973 e que levei três anos fazendo." Voltando à história do livro, relata que a polícia não poderia invadir o pensionato e encontrar Ana Clara, que era envolvida com drogas e tudo, morta. "Por isso, Lorena arruma a amiga, faz maquiagem e, junto com Lião, carrega seu corpo até uma pracinha, os bicos dos sapatos deixando sulcos por onde elas passavam. Sentam a amiga em um banco, recostam sua cabeça, e Lorena sai apagando as marcas deixadas na areia."

Enquanto a equipe da peça era embalada pelas histórias, caiu a tempestade lá fora. A diretora Yara de Novaes queria saber sobre a supremacia feminina, notada por ela no livro. Lygia explica que existia a tal mulher goiabada. "Não tinha a mulher que trabalhava. A mais importante revolução do século 20 foi a da mulher, dizia Miguel Reali."

A atriz Tuna Dwek (irmã Priscila, na peça uma freira com uma vida secreta, detesta os padres comunistas) comentou ser Lygia também uma transgressora do seu tempo. "Eu fugi desse negócio de mulher goiabada, mas o preconceito era fortíssimo. Éramos 5, 6 mocinhas na faculdade e hoje as fábricas têm muitas mulheres fazendo muito bem o trabalho dos homens."

De repente, a escritora – membro da Academia Brasileira de Letras - gira seu pensamento em direção a outro assunto: "Uma coisa me intriga, me desagrada no governo atual. É ver dona Marisa, mulher do Lula, que veio de baixo, era faxineira (sem nenhum preconceito, por favor), viajando com o cabeleireiro atrás, arrumando os cachinhos! A mulher vitrine, escrava do costureiro é horrível. Essa servidão em relação à moda é terrível. Uma vez na praia, conversando com Vinicius de Moraes, influenciada por uma amiga, pintei as unhas do pé com esmalte vermelho. O poeta disse que eu não precisava pintar."

Apaixonada por Jesus Cristo, Lygia declarou nunca ter tomado satisfação de seus maridos. Do primeiro, separou-se. O segundo, morreu. Essas cobranças de mulher, ela considera bobagens. O tema da conversa muda novamente: "Por falar em filho, hoje descobri outra notícia: Ronaldo só faz filho", brinca ela, sobre a questão da paternidade de uma possível criança do jogador de futebol. E o papo corria solto, voltava ao livro, às personagens.

"Quando terminei o livro estava em Barra de São João, onde está enterrado Casemiro de Abreu", diz, para logo em seguida recitar os trechos: "ai que saudades que tenho da aurora da minha vida.....da minha infância querida....que os tempos não trazem mais". Ficamos sabendo que Lygia caiu em prantos quando terminou de escrever o livro. Estava se despedindo de suas personagens, disse a contadora de histórias.

"Elas me habitaram por três anos. Hilda Hilst dizia que os personagens voltam. Ela era engraçada, era muito minha amiga." Entre um e outro caso, Clarisse Abujamra liga para Antonio Fagundes e passa o celular para que ela possa dar um alô para a grande diva. "Já no final, sessão tietagem imprescindível nessa ocasião.: todos pedimos autógrafos nos nossos exemplares de As Meninas. Emocionante. Voltei revigorada para a Arteplural.

(Fernanda Teixeira)